terça-feira, 13 de novembro de 2007

Segredos e cicatrizes



Tanto para os homens quanto para as mulheres, danos ao self, à alma e à psique causados por segredos e por outros motivos, fazem parte da vida da maioria das pessoas. Nem podem ser evitadas as cicatrizes subseqüentes. Existe, no entanto, ajuda para esses danos e existe a cura, sem a menor sombra de dúvida.

As feridas são genéricas; existem as que são específicas dos homens e as específicas das mulheres. O aborto provocado deixa uma cicatriz. O aborto espontâneo deixa uma cicatriz. Perder um filho de qualquer idade deixa uma cicatriz.

Às vezes estar perto de uma outra pessoa ajuda a formar cicatrizes. Podem surgir extensas cicatrizes como consequência de escolhas ingénuas, de se cair numa armadilha, bem como de escolhas acertadas. Existem tantos formatos de cicatrizes quantos são os tipos de ferida psíquica.

A repressão de temas secretos cercada de vergonha, medo, raiva, culpa ou humilhação acaba por isolar todas as outras partes do inconsciente que se encontram perto do local do segredo. É como aplicar uma anestesia, digamos, no tornozelo de uma pessoa para fazer uma cirurgia. Uma boa parte da perna acima e abaixo do tornozelo também é afectada pela anestesia, não apresentando mais sensação. É assim que a guarda de um segredo funciona na psique. Ela é um anestésico gotejando constantemente por via intravenosa, e que amortece muito mais do que a área em questão.

Não importa a natureza do segredo, não importa quanta dor esteja envolvida a sua guarda, a psique é afectada do mesmo jeito. Eis um exemplo. Uma mulher, cujo marido quarenta anos antes havia cometido suicídio três meses após o casamento, foi aconselhada pela família dele a ocultar não só as provas da grave enfermidade depressiva de que ele sofria mas também sua profunda raiva e dor emocional daquela época. Em consequência disso, ela desenvolveu uma "zona morta" relacionada à aflição dele, à sua própria aflição, bem como sua raiva do estigma cultural vinculado ao acontecimento como um todo.

Ela permitiu que a família do marido a traísse ao concordar com a exigência de que nunca deveria revelar o fato de como haviam tratado seu marido com crueldade durante anos a fio. E a cada ano no aniversário do suicídio do marido, a família mantinha um silêncio total. Ninguém ligava para perguntar, "Como está se sentindo? Você gostaria de receber visita hoje? Você sente falta dele? Sei que deve sentir. Vamos sair! para fazer alguma coisa juntos?" A mulher cavava a sepultura do marido mais uma vez e enterrava sozinha a sua dor, ano após ano.

Com o tempo, ela começou a evitar outros dias de comemoração: aniversários de casamento e de nascimento, até mesmo o seu próprio. A zona morta foi se espalhando do centro do segredo para fora, não só cobrindo os acontecimentos comemorativos, mas se estendendo a outros festejos e até além deles. Todos esses acontecimentos típicos das famílias e das amizades eram menosprezados pela mulher, que os considerava uma perda de tempo.

No seu inconsciente, porém, eles eram gestos vazios, já que ninguém se havia aproximado dela nos seus tempos de desespero. Sua dor crônica e a guarda vergonhosa daquele segredo haviam corroído aquela área da psique que regulava os relacionamentos. Na maior parte das vezes, ferimos os outros no ponto, ou bem próximo do ponto, onde nós mesmas fomos feridas.

Se, no entanto, a mulher deseja manter todos os seus instintos e ser capaz de se movimentar livremente dentro da própria psique, ela pode revelar seu segredo ou seus segredos a algum ser humano da sua confiança, recontando-os quantas vezes considerar necessário. Geralmente uma ferida não se cura apenas com um primeiro tratamento, às vezes são necessários cuidados contínuos até que se cure.

Parte da cura de um segredo reside em contá lo para que outros se comovam com ele. Dessa forma, a mulher começa a se recuperar da vergonha ao receber o auxílio e os cuidados que lhe faltaram durante o drama original.

Em grupos pequenos de mulheres nos quais haja intimidade, realizo esse intercâmbio quando peço às mulheres que se reunam e tragam fotografias das mães, tias, irmãs, companheiras, avós e de outras mulheres que sejam significativas para elas. Alinhamos todos os retratos. Alguns estão rachados, alguns descascados, alguns manchados com círculos de café ou de água; alguns foram rasgados e depois colados novamente com fita adesiva; alguns estão envoltos em papel celofane. Muitos trazem no verso belas inscrições arcaicas, "Ah, só você!", "Amor para sempre", "Eu e Joe em Atlantic City", "Eu e minha maravilhosa companheira de quarto" ou ainda "Essas são as colegas da fábrica".

Sugiro que cada mulher comece dizendo, "essas são as mulheres da minha família" ou "essas são as mulheres de quem sou herdeira". As mulheres olham para essas fotos das suas parentas e amigas e, com profunda compaixão, começam a contar as histórias e segredos de cada uma, como lhes chegaram ao conhecimento: a grande alegria, a grande mágoa, o grande esforço, a grande vitória na vida de cada uma delas. Em todo o tempo que passamos juntas, há momentos em que não se pode mais ir adiante, pois muitas lágrimas tiram muitos barcos da doca seca e lá saímos nós velejando juntas por algum tempo.

Aqui o que conta é uma verdadeira lavagem de roupas femininas de uma vez por todas. A proibição universal de se lavar a roupa suja em público é irônica porque geralmente a "roupa suja" também nunca chega a ser lavada no seio da família. Lá embaixo no canto mais escuro do porão, a "roupa suja" da família simplesmente fica ali jogada, dura com seu segredo para sempre. A insistência em se manter segredo é um veneno. Na realidade, ela quer dizer que a mulher não tem nenhum apoio à sua volta para lidar com as questões que lhe causam dor.

Muitas das histórias secretas das mulheres são do tipo que a família e os amigos não têm condição de examinar. Eles não acreditam, tentam fazer pouco do assunto ou se desviar dele, e na realidade é totalmente compreensível que ajam assim. Se eles as examinassem, se as iluminassem, trabalhassem com elas, teriam de compartilhar da dor da mulher. Nenhuma possibilidade de ficar ali parada, controlada. Nenhuma chance de um "Pois é..." seguido de silêncio. Nada de "precisamos tentar nos ocupar para não ficar repisando essas coisas". Não, se a colega, a família, a comunidade de uma mulher são solidárias na dor pela morte da mulher dos cabelos dourados, todas terão de acompanhar o cortejo fúnebre. Todas terão de chorar junto ao túmulo. Ninguém vai conseguir se desvencilhar disso, e será muito duro para todas.

Veja o que estiver vendo. Conte para alguém. Nunca é tarde demais. Se você achar que não consegue contar o segredo em voz alta, basta fazê-lo por escrito. Escolha uma pessoa que seus instintos julguem ser de confiança.

Qualquer que seja o segredo, agora compreendemos que ele faz parte das nossas funções para o resto da vida. O seu resgate cura uma ferida que esteve aberta, mas mesmo assim ficará uma cicatriz. Com mudanças no tempo, a cicatriz pode doer e voltará a fazê-lo. Isso faz parte da natureza da verdadeira dor.

Durante anos, a psicologia tradicional de todas as linhas considerou equivocadamente que a dor era um processo pelo qual se passava uma vez, preferivelmente no decurso de um ano, e que depois terminava. Havia algo de errado se o indivíduo não conseguisse ou não quisesse completar o processo dentro desse período. Agora, porém, sabemos o que os seres humanos sabem instintivamente há séculos: que certos danos, mágoas e vergonhas nunca acabam de ser lamentados. Sendo a perda de um filho pela morte ou pelo abandono uma das dores mais duradouras, se não for a mais duradoura de todas.

Num estudo realizado com diários escritos ao longo de muitos anos, Paul C. Rosenblatt, Ph.D., concluiu que as pessoas podem se recuperar da pior parte da dor da sua alma no primeiro ou no segundo ano após uma tragédia, dependendo dos sistemas de apoio dessa pessoa, entre outros aspectos. Daí em diante, porém, ela continua a passar por períodos de dor intensa. Embora esses episódios passem a rarear no tempo e a encurtar na sua duração, eles apresentam praticamente a mesma intensidade de dor quase física da ocasião original. Esses dados nos ajudam a entender a normalidade da dor a longo prazo. Quando um segredo não é revelado, a dor persiste do mesmo jeito, e por toda a vida.

A guarda de segredos prejudica a higiene natural e autocurativa da psique e do espírito. Essa é mais uma razão para revelarmos nossos segredos. A revelação e a dor nos salvam da zona morta. Elas nos permitem deixar para trás o culto fatal dos segredos. Podemos chorar e chorar muito, e sair cobertas de lágrimas, mas não manchadas de vergonha. Podemos sair daí mais profundas, com o total reconhecimento de quem somos e plenas de uma nova vida.

A Mulher Selvagem nos abraçará enquanto estivermos chorando. Ela é o Self instintivo. Ela consegue suportar nossos gritos, nossos uivos, nosso desejo de morrer sem morrer. Ela sabe aplicar os melhores remédios nos piores lugares. Ela ficará sussurrando e murmurando nos nossos ouvidos. Ela sentirá dor pela nossa dor. Ela a suportará. Não fugirá. Embora haja cicatrizes inúmeras, é bom lembrar que, em termos de resistência à tração e capacidade de absorver pressão, uma cicatriz é mais forte do que a pele.

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