terça-feira, 13 de novembro de 2007

Segredos e cicatrizes



Tanto para os homens quanto para as mulheres, danos ao self, à alma e à psique causados por segredos e por outros motivos, fazem parte da vida da maioria das pessoas. Nem podem ser evitadas as cicatrizes subseqüentes. Existe, no entanto, ajuda para esses danos e existe a cura, sem a menor sombra de dúvida.

As feridas são genéricas; existem as que são específicas dos homens e as específicas das mulheres. O aborto provocado deixa uma cicatriz. O aborto espontâneo deixa uma cicatriz. Perder um filho de qualquer idade deixa uma cicatriz.

Às vezes estar perto de uma outra pessoa ajuda a formar cicatrizes. Podem surgir extensas cicatrizes como consequência de escolhas ingénuas, de se cair numa armadilha, bem como de escolhas acertadas. Existem tantos formatos de cicatrizes quantos são os tipos de ferida psíquica.

A repressão de temas secretos cercada de vergonha, medo, raiva, culpa ou humilhação acaba por isolar todas as outras partes do inconsciente que se encontram perto do local do segredo. É como aplicar uma anestesia, digamos, no tornozelo de uma pessoa para fazer uma cirurgia. Uma boa parte da perna acima e abaixo do tornozelo também é afectada pela anestesia, não apresentando mais sensação. É assim que a guarda de um segredo funciona na psique. Ela é um anestésico gotejando constantemente por via intravenosa, e que amortece muito mais do que a área em questão.

Não importa a natureza do segredo, não importa quanta dor esteja envolvida a sua guarda, a psique é afectada do mesmo jeito. Eis um exemplo. Uma mulher, cujo marido quarenta anos antes havia cometido suicídio três meses após o casamento, foi aconselhada pela família dele a ocultar não só as provas da grave enfermidade depressiva de que ele sofria mas também sua profunda raiva e dor emocional daquela época. Em consequência disso, ela desenvolveu uma "zona morta" relacionada à aflição dele, à sua própria aflição, bem como sua raiva do estigma cultural vinculado ao acontecimento como um todo.

Ela permitiu que a família do marido a traísse ao concordar com a exigência de que nunca deveria revelar o fato de como haviam tratado seu marido com crueldade durante anos a fio. E a cada ano no aniversário do suicídio do marido, a família mantinha um silêncio total. Ninguém ligava para perguntar, "Como está se sentindo? Você gostaria de receber visita hoje? Você sente falta dele? Sei que deve sentir. Vamos sair! para fazer alguma coisa juntos?" A mulher cavava a sepultura do marido mais uma vez e enterrava sozinha a sua dor, ano após ano.

Com o tempo, ela começou a evitar outros dias de comemoração: aniversários de casamento e de nascimento, até mesmo o seu próprio. A zona morta foi se espalhando do centro do segredo para fora, não só cobrindo os acontecimentos comemorativos, mas se estendendo a outros festejos e até além deles. Todos esses acontecimentos típicos das famílias e das amizades eram menosprezados pela mulher, que os considerava uma perda de tempo.

No seu inconsciente, porém, eles eram gestos vazios, já que ninguém se havia aproximado dela nos seus tempos de desespero. Sua dor crônica e a guarda vergonhosa daquele segredo haviam corroído aquela área da psique que regulava os relacionamentos. Na maior parte das vezes, ferimos os outros no ponto, ou bem próximo do ponto, onde nós mesmas fomos feridas.

Se, no entanto, a mulher deseja manter todos os seus instintos e ser capaz de se movimentar livremente dentro da própria psique, ela pode revelar seu segredo ou seus segredos a algum ser humano da sua confiança, recontando-os quantas vezes considerar necessário. Geralmente uma ferida não se cura apenas com um primeiro tratamento, às vezes são necessários cuidados contínuos até que se cure.

Parte da cura de um segredo reside em contá lo para que outros se comovam com ele. Dessa forma, a mulher começa a se recuperar da vergonha ao receber o auxílio e os cuidados que lhe faltaram durante o drama original.

Em grupos pequenos de mulheres nos quais haja intimidade, realizo esse intercâmbio quando peço às mulheres que se reunam e tragam fotografias das mães, tias, irmãs, companheiras, avós e de outras mulheres que sejam significativas para elas. Alinhamos todos os retratos. Alguns estão rachados, alguns descascados, alguns manchados com círculos de café ou de água; alguns foram rasgados e depois colados novamente com fita adesiva; alguns estão envoltos em papel celofane. Muitos trazem no verso belas inscrições arcaicas, "Ah, só você!", "Amor para sempre", "Eu e Joe em Atlantic City", "Eu e minha maravilhosa companheira de quarto" ou ainda "Essas são as colegas da fábrica".

Sugiro que cada mulher comece dizendo, "essas são as mulheres da minha família" ou "essas são as mulheres de quem sou herdeira". As mulheres olham para essas fotos das suas parentas e amigas e, com profunda compaixão, começam a contar as histórias e segredos de cada uma, como lhes chegaram ao conhecimento: a grande alegria, a grande mágoa, o grande esforço, a grande vitória na vida de cada uma delas. Em todo o tempo que passamos juntas, há momentos em que não se pode mais ir adiante, pois muitas lágrimas tiram muitos barcos da doca seca e lá saímos nós velejando juntas por algum tempo.

Aqui o que conta é uma verdadeira lavagem de roupas femininas de uma vez por todas. A proibição universal de se lavar a roupa suja em público é irônica porque geralmente a "roupa suja" também nunca chega a ser lavada no seio da família. Lá embaixo no canto mais escuro do porão, a "roupa suja" da família simplesmente fica ali jogada, dura com seu segredo para sempre. A insistência em se manter segredo é um veneno. Na realidade, ela quer dizer que a mulher não tem nenhum apoio à sua volta para lidar com as questões que lhe causam dor.

Muitas das histórias secretas das mulheres são do tipo que a família e os amigos não têm condição de examinar. Eles não acreditam, tentam fazer pouco do assunto ou se desviar dele, e na realidade é totalmente compreensível que ajam assim. Se eles as examinassem, se as iluminassem, trabalhassem com elas, teriam de compartilhar da dor da mulher. Nenhuma possibilidade de ficar ali parada, controlada. Nenhuma chance de um "Pois é..." seguido de silêncio. Nada de "precisamos tentar nos ocupar para não ficar repisando essas coisas". Não, se a colega, a família, a comunidade de uma mulher são solidárias na dor pela morte da mulher dos cabelos dourados, todas terão de acompanhar o cortejo fúnebre. Todas terão de chorar junto ao túmulo. Ninguém vai conseguir se desvencilhar disso, e será muito duro para todas.

Veja o que estiver vendo. Conte para alguém. Nunca é tarde demais. Se você achar que não consegue contar o segredo em voz alta, basta fazê-lo por escrito. Escolha uma pessoa que seus instintos julguem ser de confiança.

Qualquer que seja o segredo, agora compreendemos que ele faz parte das nossas funções para o resto da vida. O seu resgate cura uma ferida que esteve aberta, mas mesmo assim ficará uma cicatriz. Com mudanças no tempo, a cicatriz pode doer e voltará a fazê-lo. Isso faz parte da natureza da verdadeira dor.

Durante anos, a psicologia tradicional de todas as linhas considerou equivocadamente que a dor era um processo pelo qual se passava uma vez, preferivelmente no decurso de um ano, e que depois terminava. Havia algo de errado se o indivíduo não conseguisse ou não quisesse completar o processo dentro desse período. Agora, porém, sabemos o que os seres humanos sabem instintivamente há séculos: que certos danos, mágoas e vergonhas nunca acabam de ser lamentados. Sendo a perda de um filho pela morte ou pelo abandono uma das dores mais duradouras, se não for a mais duradoura de todas.

Num estudo realizado com diários escritos ao longo de muitos anos, Paul C. Rosenblatt, Ph.D., concluiu que as pessoas podem se recuperar da pior parte da dor da sua alma no primeiro ou no segundo ano após uma tragédia, dependendo dos sistemas de apoio dessa pessoa, entre outros aspectos. Daí em diante, porém, ela continua a passar por períodos de dor intensa. Embora esses episódios passem a rarear no tempo e a encurtar na sua duração, eles apresentam praticamente a mesma intensidade de dor quase física da ocasião original. Esses dados nos ajudam a entender a normalidade da dor a longo prazo. Quando um segredo não é revelado, a dor persiste do mesmo jeito, e por toda a vida.

A guarda de segredos prejudica a higiene natural e autocurativa da psique e do espírito. Essa é mais uma razão para revelarmos nossos segredos. A revelação e a dor nos salvam da zona morta. Elas nos permitem deixar para trás o culto fatal dos segredos. Podemos chorar e chorar muito, e sair cobertas de lágrimas, mas não manchadas de vergonha. Podemos sair daí mais profundas, com o total reconhecimento de quem somos e plenas de uma nova vida.

A Mulher Selvagem nos abraçará enquanto estivermos chorando. Ela é o Self instintivo. Ela consegue suportar nossos gritos, nossos uivos, nosso desejo de morrer sem morrer. Ela sabe aplicar os melhores remédios nos piores lugares. Ela ficará sussurrando e murmurando nos nossos ouvidos. Ela sentirá dor pela nossa dor. Ela a suportará. Não fugirá. Embora haja cicatrizes inúmeras, é bom lembrar que, em termos de resistência à tração e capacidade de absorver pressão, uma cicatriz é mais forte do que a pele.

O capote expiatório


O capote expiatório

Às vezes no meu trabalho com mulheres mostro-lhes como fazer um capote expiatório longo, de tecido ou de algum outro material. Um capote expiatório é um casaco que descreve em detalhes, pintados ou escritos e com todo tipo de coisas costuradas ou pregadas nele, os insultos que a mulher sofreu na sua vida, todas asofensas, calúnias, traumas, feridas, cicatrizes. É a sua afirmação da experiência da mulher de ser transformada em bode expiatório. Às vezes demoramos apenas um dia, ou dois para fazer um casaco desses; outras vezes demoramos meses. Ele é de extrema utilidade para a descrição de todas as mágoas, baques e golpes da vida da mulher.

À princípio, fiz um capote expiatório para mim mesma. Ele logo ficou tão pesado que precisou de um cortejo de musas para carregar a cauda. À minha intenção era a de fazer esse casaco e mais tarde, depois de ter posto todo esse lixo psíquico num único objeto psíquico, eu poderia dispersar uma parte da minha antiga fragilidade ao incinerá-lo. O que aconteceu, porém, foi que pendurei o casaco no teto do corredor e cada vez que passava por ele, em vez de me sentir mal, me sentia bem. Descobri que admirava os ovarios da mulher que podia usar um casaco daqueles e ainda estar andando inabalável, cantando, criando e abanando o rabo.

Descobri que isso também se aplicava às mulheres com que eu trabalhava. Elas nunca queriam destruir seus capotes expiatórios depois de prontos. Elas queriam guardá-los para sempre, quanto mais repulsivos e sangrentos, melhor. Às vezes, também os chamamos de mantos de combate pois eles são prova da resistência, das derrotas e das vitórias das mulheres como indivíduos e das suas parentas.

É também uma boa idéia que as mulheres contassem sua idade não pelos anos mas pelas marcas de combate. "Qual é a sua idade?" perguntam-me às vezes. "Tenho dezessete marcas de combate", respondo. Geralmente as pessoas não se retraem, mas começam alegremente a medir sua idade pelas marcas de combate.

Como o povo lakota pintava hieróglifos em peles de animais para registrar os acontecimentos do inverno, e os povoai náuatle, maia e egípcio possuíam seus códices de registro dos grandes eventos da tribo, das guerras, das vitórias, as mulheres têm seus capotes expiatórios, seus mantos de combate. Fico me perguntando o que nossas netas e bisnetas irão pensar das nossas vidas assim registradas. Espero que tudo isso precise ser explicado a elas.

Que não reste nenhuma dúvida a respeito, pois você o conquistou com as difíceis opções da sua vida. Se alguém lhe perguntar sua nacionalidade, sua origem étnica ou sua linhagem, dê um sorriso enigmático. Responda: "Clã das Cicatrizes".

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

A descoberta da sua turma



O patinho feio: a descoberta daquilo a que pertencemos


Às vezes a vida dá errado para a Mulher Selvagem desde o início.

Muitas mulheres tiveram pais que as observavam enquanto eram crianças e se perguntavam perplexos como esse pequeno alienígena havia conseguido se infiltrar na família.
Outros pais estavam sempre olhando para os céus, ignorando a criança, tratando-a mal ou dando-lhe aquele olhar enregelante. Anime-se a mulher que passou por isso.

Você já se vingou por ter sido "impossível" de criar e uma eterna pedra no sapato deles, embora não por culpa sua.
Talvez até mesmo hoje você seja capaz de lhes inspirar um medo abjeto quando aparece à sua porta. Até que não está mal em termos de vingança inocente.
Certifíque-se agora de perder menos tempo com aquilo que eles não lhe deram
e de dedicar mais tempo à procura das pessoas com quem você se sinta bem. Pode ser
que você não pertença absolutamente à sua família original.

Você talvez combine com eles em termos genéticos, mas quanto ao temperamento você pode pertencer a um outro grupo. Ou quem sabe você não pertença à sua família apenas superficialmente enquanto sua alma escapa, corre pela estrada afora e satisfaz sua gula mordiscando petiscos espirituais em outras praias?

o ovulo errado


O Ovulo errado

Alguma vez você já se perguntou como conseguiu aparecer numa família tão estranha quanto a sua? Se você passou a vida se sentindo estrangeiro, como uma pessoa ligeiramente estranha ou diferente, se você é um ser solitário, que vive às margens da corrente dominante, você sem dúvida sofreu. No entanto, chega tambéma hora de remar para longe disso tudo, de experimentar um panorama diferente, de migrar de volta à terra da sua própria gente.

Que não haja mais sofrimento, que não haja mais tentativas de descobrir em que você errou. O mistério da razão pela qual você nasceu na família em que tenha nascido acabou, finis, está encerrado. Descanse por um instante na proa, refrescando-se no vento que vem da sua verdadeira terra natal.

Durante anos a fio, as mulheres que carregam em si a vida mística do arquétipo da Mulher Selvagem queixaram-se em silêncio: "Por que sou tão diferente?

Se eram filhas da natureza, eram mantidas entre quatro paredes. Se eram cientistas, diziam-lhes que deviam ser mães. Se queriam ser mães, diziam-lhes que, então, era melhor que se adaptassem perfeitamente ao papel. Se queriam inventar algo, diziam-lhes que fossem práticas. Se tinham vontade de criar, diziam-lhes que o serviço doméstico nunca termina.

Portanto, é claro que a resposta a "por que comigo, por que essa família, por que sou tão diferente", é que não há resposta para esse tipo de pergunta. Mesmo assim, o ego precisa ruminar alguma coisa antes de se soltar, e proponho três respostas de qualquer maneira. Pode escolher a que preferir, mas tem de escolher pelo menos uma. qualquer uma serve.

Prepare-se. Ei-las.

Nascemos do jeito que nascemos e nas estranhas famílias a que pertencemos l)

porque sim (quase ninguém acredita nessa), 2) o Self tem um planejamento, e nossos cérebros de ervilha são ínfimos demais para desvendá-lo (muitas consideram essa idéia atraente) ou 3) por causa da síndrome do zigoto errado (bem... é, pode ser...

mas o que é isso afinal?).

Sua família a considera uma alienígena. Você tem penas, eles têm escamas.

Sua idéia de diversão é a floresta, os ermos, a vida interior, a majestade da natureza. A idéia deles de diversão é dobrar toalhas direitinho. Se isso acontece com você na sua família, você está sendo vítima da síndrome do zigoto errado.

Sua família passa lentamente pelo tempo; você passa como o vento. Eles são barulhentos, você é delicada; ou eles são calados e você canta alto. Você sabe porque sabe. Eles querem prova e uma dissertação de trezentas páginas. Sem a menor dúvida, trata-se da síndrome do zigoto errado.

Nunca ouviu falar nisso? Bem, foi assim, a fada dos zigotos estava sobrevoando sua cidade natal numa noite, e todos os zigotinhos na sua cesta pulavam e saltavam de alegria.

Na verdade, você estava destinada a pais que a teriam compreendido, mas a fada dos zigotos entrou numa zona de turbulência e, epa, você caiu da cesta na casa errada. Você caiu de cabeça para baixo bem numa família que não lhe estava destinada. Sua "verdadeira" família ficava uns cinco quilômetros mais adiante.

É por isso que você se apaixonou por uma família que não era a sua, e que morava a uns cinco quilômetros dali. Você sempre quis que o sr. e sra. Fulano-de-Tal fossem seus pais de verdade. É possível que eles fossem mesmo.

É por isso que você sapateia pelos corredores apesar de ter uma família que vive grudada na televisão. É por isso que seus pais ficam alarmados cada vez que você vem visitá-los ou telefona. Eles estão preocupados "com o que ela vai aprontar agora?

Da última vez, ela nos deixou envergonhados, só Deus sabe o que vai fazer desta vez. Ai!" Eles cobrem os olhos quando você se aproxima, e não é por se ofuscarem com sua luz. Tudo o que você quer é amor. Tudo o que eles querem é paz.

E assim, antes mesmo que vocês se sentem à mesa, ela já está dançando por ali louca para deixar cair um fio de cabelo no ensopado da família.

Apesar de não ser sua intenção irritar a família, eles ficarão irritados do mesmo jeito. Quando você aparece, tudo e todos parecem enlouquecer. É um sinal inequívoco dos zigotos errados na família o fato de os pais se sentirem ofendidos o tempo todo enquanto os filhos têm a impressão de que nunca vão conseguir fazer nada certo.

A família não-selvagem tem apenas um desejo. Prepare-se, vou lhe contar o grande segredo. Eis a coisa misteriosa e tremenda que eles realmente querem de você.

Os não-selvagens querem coerência.

Querem que você seja hoje exatamente a mesma que foi ontem. Querem que você não mude com o passar dos dias, mas que permaneça como no início dos tempos.

A coerência nas atitudes é uma expressão impossível para a Mulher Selvagem, não revela coerência pela uniformidade mas, sim, pela vida criativa, pela percepção, pela rápida captação de imagens, pela flexibilidade e destreza coerentes. a arte, a dança ou a vida.

Dessa forma, o zigoto errado dá sua fidelidade, não à família, mas ao seu Self interior.

É por isso que ela se sente dividida. Sua mãe loba está segurando seu rabo; sua família concreta prendeu seus braços. Não demora muito, e ela está gritando de dor, rosnando e mordendo a si mesma e aos outros, para afinal ficar numa calma mortal. Quando se olha nos seus olhos, vêem-se ojos del cielo, olhos vazios, os de uma pessoa que não está mais ali.

Há mais uma questão a tratar. Os zigotos errados aprendem a sobreviver. É
difícil passar anos a fio na companhia de quem não pode nos ajudar a florescer. Ser
capaz de dizer que sobrevivemos é um feito. É então que se passa ao próximo estágio da sobrevivência, à cura e ao desenvolvimento futuro.
Vicejar é o nosso destino na terra. Vicejar, não apenas sobreviver, é o nosso direito
inato na qualidade de mulheres.

O amor pela alma


O amor pela alma

No final da história, os cisnes reconhecem o patinho como um dos seus antes dele mesmo. Isso é bem típico das mulheres exiladas. Depois de tanto sofrer e vaguear, elas conseguem atravessar por acaso a fronteira com seu próprio território e muitas vezes não percebem por um certo tempo que as expressões das pessoas deixaram de ser depreciativas e passaram a ser neutras com maior freqüência, quando não sejam de admiração e de aprovação.

Seria de se pensar que, já que estão agora no seu próprio chão psíquico, elas estariam delirantemente felizes. Mas, não. Pelo menos por algum tempo, sentem uma terrível desconfiança. Será que essas pessoas realmente me consideram? Será que aqui eu estou em segurança? Será que não vão me espantar daqui? Será que agora vou poder dormir com os dois olhos fechados? Será que está certo agir como... um cisne? Com o tempo, essas suspeitas são abandonadas, e começa o próximo estágio da volta ao próprio eu: a aceitação da nossa própria, beleza singular, ou seja, da alma selvagem da qual somos feitas.

É provável que não exista uma medida melhor e mais confiável para se saber se uma mulher passou pelo status de patinho feio em algum ponto da sua vida ou durante toda ela do que sua incapacidade de aceitar um cumprimento sincero.

Se você disser que ela é bonita, que sua arte é linda ou se a elogiar por alguma coisa de que sua alma participou, que tenha sido inspirada por sua alma ou que esteja dela impregnada, algo na sua cabeça lhe diz que ela não merece o elogio e que você, que a está elogiando, é idiota por ter uma opinião dessas a seu respeito. Em vez de entender que a beleza da sua alma aparece refulgente quando ela é ela mesma, amulher muda de assunto e consegue assim roubar o sustento do self-alma, que se nutre de ser reconhecido.

Portanto, essa é a função final da mulher exilada que encontra seu próprio grupo: não só a de aceitar a própria individualidade, a própria identidade específica como um determinado tipo de pessoa, mas também a de aceitar a própria beleza...
Quando aceitamos nossa própria beleza selvagem, ela fica em perspectiva, e nós deixamos de ser incomodadas pela sua percepção, mas também não renunciaríamos a ela nem negaríamos sua existência. Uma loba sabe a beleza que tem ao saltar? Uma fêmea de felino sabe as belas formas que cria ao se sentar? Uma ave se espanta com o som que ouve ao abrir as asas? Aprendendo com elas, simplesmente agimos à nossa própria maneira e não evitamos nossa beleza natural nem nos escondemos dela. É esse desejo intenso que nos faz procurar a Mulher Selvagem e encontrá-la. Não é tão difícil quanto se poderia imaginar a princípio, pois a Mulher Selvagem também está procurando por nós. Nós somos seus filhotes.

Os três cabelos de ouro


Os três cabelos de ouro

Uma vez, numa noite escuríssima e trevosa, o tipo de noite em que a terra fica negra, as árvores parecem mãos retorcidas e 0 céu é de um azul-escuro de meia-noite, um velho vinha cambaleando pela floresta, meio às cegas devido aos galhos das árvores. Os ramos arranhavam seu rosto, e ele trazia um pequeno lampião numa das mãos. A vela dentro do lampião tinha uma chama cada vez mais baixa. O homem tinha os cabelos amarelos e compridos, dentes amarelos e rachados e unhas amarelas e recurvas. Ele andava todo dobrado, e suas costas eram arredondadas como um saco de farinha. Sua pele era tão vincada que caía em folhos do seu queixo, das axilas e dos quadris.

Ele se apoiava numa árvore e se forçava a avançar; depois se agarrava numa outra para avançar mais um pouco. E assim, remando desse jeito e respirando com dificuldade ele ia atravessando a floresta.

Cada osso nos seus pés ardia como fogo. As corujas nas árvores piavam acompanhando o gemido das suas articulações à medida que ele seguia pelas trevas.

Muito ao longe, tremeluzia uma luzinha, um chalé, um fogo, um lar, um local de descanso; e ele se esforçava na direção daquela luz. No exato instante em que chegou à porta, ele estava tão cansado, tão exausto, que a pequena chama no seu lampião se apagou e o velho caiu porta adentro desmaiado.

Dentro da casa, uma velha estava sentada diante de uma bela fogueira e ela se apressou a chegar até ele, segurou-o nos braços e o levou mais para perto do fogo. Ela o abraçou como' uma mãe abraça o filho. Ela se sentou na cadeira de balanço e o embalou. E ali ficaram os dois, o pobre e frágil velhinho, apenas um saco de ossos, e velha forte que o embalava.

— Pronto, pronto. Calma, calma. Pronto, pronto. Ela o embalou a noite inteira e, quando ainda não havia amanhecido mas estava quase chegando a hora, ele estava extremamente remoçado. Ele era agora um belo rapaz, de cabelos dourados e membros longos e fortes. Mas ela continuava a embalá-lo.

— Pronto, pronto. Calma, calma. Pronto, pronto. E quando a manhã foi se aproximando cada vez mais, o rapaz foi se transformando numa linda criancinha com cabelos dourados trançados como palha de milho.

No momento exato do raiar do dia, a velha arrancou bem rápido três fios da linda cabeça da criança e os jogou nos ladrilhos. Eles fizeram um barulhinho.

Tiiiiiing! Tiiiiiiing! Tiiiiiiiiing!

E a criancinha nos seus braços desceu do seu colo e saiu correndo para a porta.

Voltando o rosto por um instante para a velha, o menino deu um sorriso
deslumbrante, virou-se e saiu voando para o céu para se tornar o brilhante sol da
manhã.

Tudo à noite é diferente



Tudo à noite é diferente. Por isso, para entender essa história precisamos mergulhar numa consciência noturna, um estado no qual percebemos com maior rapidez cada estalido ou ruído. É à noite que ficamos mais próximos de nós mesmos, mais próximos de idéias e sentimentos essenciais que não são tão registrados durante o dia.

A noite é o mundo de Mãe Nyx, a mulher que criou o mundo. Ela é a Velha Mãe dos Dias, uma das megeras da vida e da morte. Quando é noite num conto de fadas, sabemos que estamos inconsciente. São João da Cruz chamou-a de "noite escura da alma''. Nessa história, ela é umperíodo em que um homem muito velho vai enfraquecendo cada vez mais. É uma hora na qual estamos nas últimas, em algum sentido importante.

Perder o rumo significa perder a energia. A tentativa absolutamente equivocada quando perdemos o rumo é a de correr para arrumar tudo de novo.

Correr não é o que devemos fazer. Como vemos na História, sentar e balançar é o que devemos fazer. A paciência, a paz e o balanço renovam as idéias. Só o ato de entreter uma idéia e a paciência para embalá-la são o que algumas mulheres poderiam chamar de grande prazer.

Ora, muitas vezes quando as idéias não estão funcionando bem, ou quando nós não as estamos trabalhando bem, perdemos nosso rumo. Isso faz parte de um ciclo natural e ocorre porque a idéia ficou ultrapassada, ou porque nós perdemos a capacidade de vê-la por um ângulo novo. Nós mesmas ficamos velhas e desconjuntadas como o velho em "Três cabelos de ouro". Embora haja muitas teorias sobre "bloqueios" criativos, a verdade é que bloqueios brandos vêm e voltam como as condições atmosféricas e como as estações do ano — com as exceções dos bloqueios psicológicos de que falamos anteriormente, como não mergulhar na própria verdade, como o medo da rejeição, o medo de dizer o que se sabe, a preocupação com a própria competência, a poluição da correnteza básica, entre outros.

Essa história é tão admirável por delinear todo o ciclo de uma idéia, a ínfima luz que lhe é concedida, que é obviamente a própria idéia, o fato de ela se cansar e praticamente se extinguir, tudo como parte do seu ciclo natural. Nos contos de fadas,quando acontece algo de mau, isso significa que algo novo precisa ser tentado, uma nova energia precisa ser aplicada, uma força mágica, de cura e ajuda precisa ser consultada.

Aqui mais uma vez vemos a velha La Que Sabé, a mulher, de dois milhões de anos. Ela é "aquela que sabe". Ser mantido diante do seu fogo é algo revigorante, reparador. É para esse fogo e para os braços dela que o velho se arrasta, pois sem eles ele morreria.

O velho está cansado de passar tempo demais dedicado ao trabalho que lhe demos. Vocês alguma vez viram uma mulher trabalhar como se o diabo estivesse agarrado no seu dedão do pé, só para de repente entrar em colapso e não dar mais um passo sequer? Você alguma vez viu uma mulher totalmente dedicada a alguma questão social que um belo dia virou as costas e mandou tudo para o inferno? É que seu animus está esgotado. Ele precisa ser embalado por La Que Sabé. A mulher cujas idéias ou energias feneceram, murcharam ou cessaram completamente precisa saber o caminho até a velha curandera e precisa levar o animus exausto até lá para que ele se recupere.

Qualquer que seja sua idéia de uma trégua, muito embora elas estejam falando
com um cansaço e uma frustração humilhantes, eu sempre digo que é uma boa idéia, que chegou a hora de descansar. Ao ouvir isso elas geralmente berram, "Descansar!

Como posso descansar quando o mundo inteiro está se destruindo diante dos meus olhos?"